Archive for janeiro, 2016

A fila tá andando.

sábado, janeiro 23rd, 2016

Maurício Novaes e Edgard Poças

Eu não quero saber

Se eu tô indo ou tô voltando

O que me interessa saber

É que a fila tá andando

 

Eu não quero nem saber…

 

Eu não sei se ainda é cêdo

E nem sei se já é tarde

No altar da minha vida

Meu amor ainda arde

 

O Senhor vai me chamar

Ai, meu Deus, não seja agora

Que viver é tão gostoso

Pra ficar de fora

 

Eu não quero nem saber…

 

Ando em cima do meu tempo

Que pra mim é sempre quando

Esse tempo que eu vivo

Vou vivendo e vou gastando

 

Essa vida é uma festa

Onde todo mundo cabe

Voce chega nos durantes

E sai antes que ela acabe

 

Eu não quero nem saber…

 

Vivo assim o tempo inteiro

Vivo agora e vou sem pressa

Ontem fica muito longe

Amanhã é só promessa

 

Pelo andar da carruagem

Asseguro firmemente

O futuro do futuro

É o melhor presente!

 

Eu não quero nem saber…

 •

Audio clip: Adobe Flash Player (version 9 or above) is required to play this audio clip. Download the latest version here. You also need to have JavaScript enabled in your browser.

Voz e violão: Maurício Novaes

As facetas do Multimário. Pelo Professor Carlos Augusto Calil.

sábado, janeiro 16th, 2016

Análise brilhante.

Professor da USP CARLOS AUGUSTO CALIL – ESPECIAL PARA O ESTADO DE S. PAULO – analisa as várias facetas do autor de ‘Macunaíma’
Mário de Andrade produziu sua obra para ‘dar uma alma ao Brasil’

A obra de Mário de Andrade agora pertence a seus leitores. Intelectual duplo de artista, legou ao País uma das obras mais fecundas como expansão da sensibilidade de toda uma geração. Ativo participante da Semana de Arte Moderna de 1922, lutou com determinação para superar o complexo de inferioridade nacional diante da cultura dos países dominantes, enquanto convidava os companheiros de jornada ao mergulho na descoberta do Brasil profundo.

Excepcionalmente dotado, foi poeta, professor de música, romancista, crítico de artes, polemista, fotógrafo, turista, gestor cultural, antropólogo, carteador incansável, etc. Ele mesmo se definiu sem modéstia: “Eu sou trezentos, trezentos e cinquenta”.

Poeta da sua cidade de São Paulo, transformou o território urbano em extensão do seu corpo. “Meus pés enterrem na rua Aurora,/No Paiçandu deixem meu sexo,/Na Lopes Chaves a cabeça/Esqueçam.” Pressentindo a própria morte, viu-se arrastado nas águas do rio Tietê.

Ele se definiu sem modéstia: 'Eu sou trezentos, trezentos e cinquenta'
Ele se definiu sem modéstia: ‘Eu sou trezentos, trezentos e cinquenta’

Sua poesia é dilacerada. Nela, “a própria dor é uma felicidade”. O paulista mais brasileiro que já houve, saboreia o “Brasil…/ Mastigado na gostosura quente do amendoim…/ Falado numa língua curumim…”.

Macunaíma, seu livro mais conhecido, é uma amarga interpretação do País. “O herói sem nenhum caráter”, sedutor, irreverente, inconstante, preguiçoso, é a consumada representação da volubilidade do ser brasileiro. Macunaíma é individualista, procura vantagem em tudo que faz, pouco se importando com o bem comum. Essa a principal crítica de Mário ao nosso tecido social.

A escrita, embora exigente, é deliciosamente maliciosa; sem se ater a nenhum regionalismo, incorpora todos eles. Barbarismos, chistes, parlendas, causos, habilmente costurados, estimulam no leitor uma apropriação saborosa do imoralismo inocente do nosso cidadão ancestral. Apesar de muito feio, Mário era um grande sensual. O mote “Vamos conversar porcaria?” se tornou senha entre os jovens da geração que sucedeu a dos modernistas. Bebiam alegria, inconformismo, derrisão, nas cuias do Uraricoera.

Mário de Andrade publicou contos, geralmente aproveitando alguma situação vista ou vivida. Situação familiar, diálogo roubado, observação psicológica, fratura amorosa, tensão social, tudo valia na sua pequena ficção. Seu conto mais pungente, Frederico Paciência, relata o despertar da sexualidade entre meninos de colégio, que se veem obrigados a reprimir a atração homossexual. A escrita é delicada e sugestiva, sem jamais esconder a dor da amputação do desejo.

A veia crítica de Mário de Andrade era prodigiosa. Podia falar com igual desenvoltura sobre música (sua especialidade profissional), literatura, artes visuais, arquitetura. Com saber enciclopédico e inesgotável curiosidade intelectual, afrontou o desafio de fundar a crítica de artes num país avesso à reflexão sistemática. Em “O artista e o artesão”, aula inaugural do curso de Filosofia e História da Arte, de 1938, Mário defende a apropriação da técnica do artesão pelo artista, mas adverte: somente a sua dimensão humana o elevará a essa condição. “A arte é social. A obra do artista não tem preço, não se vende, é patrimônio comum.” Mário foi comprovadamente um professor dedicado e humilde, sempre disposto a aprender.

Nunca viajou à Europa, como faziam corriqueiramente seus amigos modernistas, mas vasculhou os recantos mais remotos do Brasil, em busca desse país intangível. Norte e Nordeste foram esquadrinhados em pesquisas musicais, antropológicas, fotográficas. Nessa jornada, encontrou tipos humanos extraordinários, como o cantador de cocos Chico Antônio, que despertou em Mário “uma das comoções mais formidáveis da minha vida”. O turista aprendiz, diário dessas viagens é o roteiro certo para tornar brasileiro um mero cidadão do Brasil.

Mário de Andrade foi um carteador compulsivo. Estima-se que tenha escrito cerca de sete mil cartas, muitas ainda inéditas. Ele dizia que descansava escrevendo cartas. Entre seus interlocutores privilegiados estão Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. A conversa de Mário com esses dois grandes poetas, já publicada, constitui um patrimônio literário raro mesmo nas literaturas mais desenvolvidas.

Moderno, militante, participativo, Mário era portador de um autêntico desejo de comunicação, de compartilhamento. Fosse vivo, estaria pendurado nas redes sociais, opinando, polemizando, ensinando. Produziu sua obra para “dar uma alma ao Brasil”.

CARLOS AUGUSTO CALIL É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE CINEMA, TELEVISÃO E RÁDIO DA USP. CURADOR DA MOSTRA MORADA DO CORAÇÃO PERDIDO, NA CASA DE MÁRIO DE ANDRADE

Minha mãe Antonietta foi aluna de Mário de Andrade no Conservatório Dramático Musical de São Paulo. Matéria: História da Música.

Leia:

http://www.edgardpocas.com.br/category/qualquer-nota/minha-mae-e-o-lente-mario-de-andrade/

Maria em Pessoa.

sexta-feira, janeiro 15th, 2016

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,

Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,

Relembro, velando em modorra incômoda,

Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angústia

Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.

O irreparável do meu passado – esse é que é o cadáver!

Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.

Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.

Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,

Na ilusão do espaço e do tempo,

Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;

O que só agora vejo que deveria ter feito,

O que só agora claramente vejo que deveria ter sido –

Isso é que é morto para além de todos os Deuses,

Isso – e foi afinal o melhor de mim – é que nem os Deuses fazem viver…

Se em certa altura

Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;

Se em certo momento

Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;

Se em certa conversa

Tivesse dito as frases que só agora, no meio-sono, elaboro –

Se tudo isso tivesse sido assim,

Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro

Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,

Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;

Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;

Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,

Claras, inevitáveis, naturais,

A conversa fechada concludentemente,

A matéria toda resolvida…

Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem ‘sperança nenhuma

Em sistema metafísico nenhum.

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,

Mas poderei levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?

Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca

Como uma verdade de que não partilho,

E lá fora o luar, com a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.

Álvaro de Campos.

Se eu morresse amanhã (Antonio Maria).

Voz:Dircinha Batista