Chico Alves. Adeus no Largo da Concórdia.

Nasci em 1946, na rua São Leopoldo num tempo em que gente nascia em casa. No bairro do Belém em São Paulo. A poucos metros da cancela dos trens indovindos da Estação Roosevelt. A casinha azul e branca ainda está lá. Os apitos das fábricas não. Nem o armazen do seu Vicente. Nem a algazarra dos operários batendo bola de meia na cancha de paralelepípedos da rua Cajuru, onde meu pai trabalhava na fábrica de tintas CIL que protegiam o Brasil, dos tios João e Américo Marques da Costa. Minha mãe era formada em piano pelo Conservatório Dramático Musical de São Paulo, aluna de Mário de Andrade em  História da Música. Noturnos e valsas de Chopin, chorinhos sapécas de Nazareth. E Tico-tico no fubá, partitura comprada do próprio Zequinha de Abreu. Novelas na rádio América. Comícios no Largo do Belém. Rojões e marchinhas. Presidente Getúlio, Adhemar senador, e Lucas Garcez pra governador – é PTB, é PSP,  juntinhos unidos iremos vencer!  Hugo Borghi levou meu voto infante mas, não a governança da Terra da Garoa – naqueles idos São Paulo garoava… Ugobógui… foi meu primeiro revés político.

Meu pai jogando sueca na sala com seu Vicente, e eis que de repente surge na janela um ladrão de máscara vermelha, na verdade um lenço portando uma…faca. Berros. Assaltante mascarado, sozinho, anunciando-se pela janela, de faca, que tempos!

Depois, Rua Herval. Um prédio, lembrando que prédio é uma coisa, edifício é outra. Primeiro andar, em cima da massa do pastifício do seu Rômulo. De lá lembro só do papai Noël sorrateiro, um trem elétrico Leonel e uma inveja do Nando, meu irmão Luiz Fernando querido, pai dos meus jingles de campanhas publicitárias. Explico. Nando foi o criador da primeira campanha na qual participei ativamente: Seu guarda chuvas tem asas. Cumprindo o briefing, saltamos do  primeiro andar abrimos o guarda chuva e aterrisamos no target, os fundos do seu Rômulo e o recall não foi dos melhores.
 Fratura de clavícula. Almoço de domingo, depois da missa e jornaleiro. Gíbís e palavras cruzadas. Diogo meu pai, minha mãe Antonietta, Nando e eu. Cantina Balila, rua do Gazômetro. Comida boa, farta, garçons amigos, o porteiro mudo, querido Ama Ama, nos recebendo festivamente fardado, um general da Atlântida. Quase em frente, a Fábrica de Balas A Americana, das Balas Futebol, da febre das figurinhas. Felicidade era trocar um album completo, com  Futebolino e tudo, por um licoreiro.

Ás vezes, almoçavamos no apartamento dos meus avós maternos, vigésimo andar do prédio onde ficava o Cine Piratininga, O Maior Cinema do Brasil, na avenida Rangel Pestana, quase em frente a igreja do Senhor Bom Jesus do Brás, pegado ao largo da Concórdia. Vô Antonietta, italiana de Salerno, e vô Luiz Burza, argentino de Rosário, dono da Cartonagem Burza, rua Martim Burchard, ali perto. Nhoque. Saudade. Revistas das minhas tias Odette e Ivone e meu tio Luizinho. O Cruzeiro, vinha de Amigo da Onça, do Pif Paf de Vão Gôgo (Millor Fernandes), de aulas de jiu jitsu ministradas por Hélio Gracie, precursor do vale tudo, hoje o MMA e reportagens sensacionalistas sobre discos voadores. Até hoje espero ansiosamente suas visitas. E Seleções Readers Digest, onde enriqueci o vocabulário com Aurélio Buarque de Holanda e o repertório humorístico com as Piadas de Caserna. Vitrola, Caixinha de agulhas. LPs ainda não. Tangos.

…era, para mi la vida entera,
 como un sol de primavera
 mi esperanza y mi pasión,
 sabía que en el mundo no cabía
 toda la humilde alegría
 de mi pobre corazón…

Era um sábado, e Francisco Alves, o Rei da Voz (novamente a história conta),  que fora contratado pela Rádio Nacional de São Paulo para uma série de shows em praças públicas da capital paulista, realizou a primeira das apresentações no largo da Concórdia no bairro do Brás. Do apartamento de meus avós eu vi a multidão ouvindo O Chico Viola. Lembro dele cantando a Canção da criança, cuja renda, diz tambem a história, era destinada as crianças da Casa de Lazaro, que cuidava de crianças pobres:

Criança feliz, que vive a cantar. Alegre a embalar seu sonho infantil. Oh, meu bom Jesus que a todos conduz, olhai as crianças do nosso Brasil.

Daqui para frente é o que aprendi depois.
 Chico, que não gostava de viajar de avião, estava com uma certa pressa de chegar ao Rio, a fim de se apresentar descansado em seu programa na Rádio Nacional, domingo ao meio-dia, sempre anunciado pomposamente pela locutora Lúcia Helena: “Ao se encontrarem os ponteiros na metade do dia…”. Foi de carona com o violonista Rago até o centro da cidade, pegou seu Buick preto ano 1951 e rumou para o Rio de Janeiro pela via Dutra, recentemente inaugurada.  Rago conta que tentou convencer o cantor a não viajar para o Rio, pois havia um novo show marcado em São Paulo dois dias depois, mas, de acordo com o violonista, Chico Alves era teimoso, e partiu para nunca mais voltar. Na altura de Pindamonhangaba, numa curva, bateu de frente a um caminhão que invadiu a contra mão. Acabou ali a vida do rei da voz.

Dormi no apartamento dos meus avós e jamais vou esquecer da manhã, da gritaria no prédio: Chico Viola morreu!

E da música que tocou no rádio, que me deixou intrigado com a frase que dizia …quanto mais ponho bebida, mas a sombra colorida, aparece em meu olhar…

Hoje eu sei que a letra é do grande Orestes Barbosa e a melodia de A mulher que ficou na taça é de Francisco Alves.

E que sombra colorida não existe. Ou existe?

Chico Alves

http://www.youtube.com/watch?v=kJlGx1bjx_E

A  ilustração acima é do meu querido e saudoso amigo Miécio Caffé que chegou a desenhar para as Balas Americana. Mas não é o autor do Futebolino (o menino símbolo das Balas Futebol).

Album se figurinhas e o Futebolino

Album de figurinhas e o Futebolino

Futebolino, com ilustração de Miécio Caffé

Futebolino, com ilustração de Miécio Caffé

CIL • Companhia Industrial Limitada

Tintas CIL protegem o Brasil

Meu pai. Batia um bolão.

Carteirinha da Cil F.C.

O maior do Brasil

O maior do Brasil

Francisco Alves

Herivelto Martins e David Nasser

Até a lua do Rio,
No céu tranquilo e vazio,
Não inspira mais amor;
O violão desafina
Porque chora em cada esquina
A falta do seu cantor.
Escravo da melodia,
Ele cantando escrevia
O que na alma brotava;
Subindo os degraus da glória,
Ele escreveu a história
Da cidade que adorava.
O Rio foi o seu berço,
O violão foi o terço,
O samba sua oração;
Sambista de um mundo novo,
Da alma simples de um povo
Que samba de pé no chão.
Velho Chico tu recordas
Um violão, cujas cordas
A mão de Deus rebentou;
Porque está faltando agora
A lágrima que o samba chora
Na voz que a chama apagou.

Mais um pouco de Chico Alves:

Foi ela

 Boa noite amor

 Cadeira vazia

Quem há de dizer

Serra da boa esperança

Onde o céu é mais azul

http://www.youtube.com/watch?v=Y7fVUEm82sc

Trecho do último show ao vivo de Francisco Alves no Largo da Concórdia (audio)

http://www.youtube.com/watch?v=9VFEg8fCC2g

Francisco Alves, o rei da Voz – Parte I. Especial da TV Cultura. Cenas de Chico Alves, Carmem Costa, João Dias

Francisco Alves, o rei da Voz – Parte Final. Cenas do povo nas ruas, no dia do enterro de Chico. Depoimentos de João Dias e Elis Regina

Francisco de Morais Alves (19 de agosto de 1898 — 27 de setembro de 1952) 

Tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

4 Responses to “Chico Alves. Adeus no Largo da Concórdia.”

  1. Marcos Zegunis disse:

    em 2015 encontrei num bazar de usados uma caixa de fósforos das balas futebol… tenho 39 anos mas sei que foi muito romântica esta época e como coleciono coisas de futebol comprei… abrços

  2. Edgard Poças disse:

    Obrigado pela visita. Apareça sempre. Abraço.

  3. Waldir Albieri disse:

    Grande amigo Edgard! Viajei na sua crônica. Somos contemporâneos. Dividimos a sala de aula e as camisas do time de tuebol do Colégio. Como você, também guardo alguns álbuns de figurinhas, doces lembranças da infância. O que mais gosto é o das Balas Seleções. Chupei muitas balas e acumulei cáries em razão delas. O futebolino era um figurinha carimbada, assim como também eram Djalma Santos, Cabeção e algumas outras. As mãos viviam inchadas de jogar “bafo” e os bolsos das calças acabavam furados de tanto serem depósitos de figurinhas repetidas. Bons tempos! Ainda me lembro da nossa brincadeira na sala de aulas, escalando hipotéticos times de futebol formados por jogadores com nomes estranhos: Mão de Onça, Guanxuma, Pepino, Nena, Cento e Nove, Pé-de-Valsa e outros tantos eram titulares desses times. Forte abraço meu amigo e paragéns pela crônica. Ah… an passant… naquela tarde Chico Alves viajava com o rádio do seu carro ligado na transmissão do jogo do América, do qual era torcedor. Atualmente eu nem sei se o velho e saudoso América ainda tem torcedores.

  4. Edgard Poças disse:

    Grande amigo Waldir!
    O Chico era um torcedor fervoroso do América e foi ao RJ somente para assistir o jogo. O Rago, violonista que o acompanhou, na apresentação, e depois, até a rua Boavista onde seu Buick estava estacionando, o aconselhou a não ir, pois teria que voltar na segunda, mas…
    Falou em América lembro do Pompéia, o goleiro espetáculo. Ele “voava”, a gente dizia. Olhava encantado as fotos que saiam na Manchete Esportiva, lembra?
    Aliás, nessa revista eu li, pela primeira vez, uma crônica de futebol do genial Nelson Rodrigues, e tive o prazer de ser apresentado ao imponderável Sobrenatural de Almeida,sempre à sombra das chuteiras imortais!
    Grande abraço.

Leave a Reply